quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

parte I

Ela percebeu que a luz estava acesa. Ainda sem ter retornado da inconsciência que a preenchia pela boca aberta, amarga, seca, quem percebeu o contraste de brilho entre o exterior do quarto e as retinas escondidas foi o corpo - mais precisamente um dos pés, ao passear pela superfície das pernas, em movimento de quem dorme acompanhado somente de si, sem o pudor da movimentação feminina, silenciosa ou mesmo pudica. Seu pé entendeu o amarelo quase agressivo da luz como dia novo e avisou às demais partes do corpo. Trechos do linho dos lençóis e mesmo o colchão tornaram-se cientes da necessidade ancestral de despertar frente à origem já tão repetida do dia, não pelo gérmen de ancestralidade que há em utensílios de pano e espuma para o sono, nem pela sua proximidade atemporal com os seres humanos que deixaram de dormir em madeira ou pedra, nada disso; o que ocorreu é que o corpo estava tão distante da consciência, enterrada esta nas profundezas de quase morte do sono, que aquele, o corpo, abandonadamente orgânico, como só o é de fato quando transformado em cadáver, mesclou-se aos tecidos que acompanhavam o descanso.

Assim, todos souberam que a luz estava acessa, ela e os lençóis, igualmente o colchão.