Há alguns meses, eu diariamente sento na minha cadeira e passo o dia narrando histórias de gente. Gente com cheiro forte de gente, que às vezes faz com que eu me afaste em alguns palmos para trás.
Eles vêm com essa camada calejada de desconfiança de quem já se esfolou demais de um lado e de outro. Não me assusta. Qualquer tentativa de rompê-la (da mais simples) já escancara um riso fácil sempre transbordando de gratidão. Gratidão que me incomoda e dá corda ao meu pronto discurso: "O senhor não tem que agradecer, isso não é nenhum favor que lhe fazem, é direito seu, não é favor". Direito não é favor. Sequer ouvem, os ouvidos moldados por essa audição seletiva de gente simples que já entendeu o ritmo da engrenagem que os carrega de uma espera a outra - e se deixa levar. Indignação há, mas uma que nem sabe contra o que se voltar.
Porque tudo é pessoal, é "o juiz", o "adevogado", é o "Lula" e a mocinha da recepção. Rompem de vez com a abstração que é o embate entre órgãos públicos. É o jeito deles de criar uma razão de ser que sustente a máquina estatal multifacetada e esquizofrênica que dá, tira, permite, proíbe e oferece assistência para buscar outra vez. Uma só máquina caduca e os tentáculos dela.
Você não vê cara do seu defensor, você não vê a cara do juiz, o perito médico não te olha na cara. Você é uma estatística adoentada que não incomoda nem pela voz, é só pelo cheiro. Ninguém te explica o que está acontecendo e você, Macabéa, está com vergonha de perguntar, sem saberia como fazer.
Mundo real, tão rente ao chão, é só aqui que eu quero estar.